Acordei cedo hoje. Na verdade, quase não consegui dormir. O dia, o grande dia. E como eu esperava por esses grandes dias.
Levantei e fui para a cozinha. Liguei o rádio para ouvir as notícias matinais. Baixei um pouquinho o volume, para não acordar a minha esposa.
A cafeteira estava louca. Não sei o que dá nesses eletrodomésticos. Fiz o café à moda antiga, mesmo.
Estou ficando velho.
Vesti meu terno hoje. Eu gosto de usar terno aos domingos. Hoje em dia não se usa mais terno aos domingos.
Queria ter escrito um livro. Desde os 20 anos de idade, era essa a minha grande intenção.
Mas eu não tinha vivência suficiente, achava. Esperei um grande amor, uma grande dor, algo que me marcasse acontecer. Esperei em vão.
Não tenho vícios, e um artista precisa de vícios. As pessoas gostam de ler relatos viciosos. Não gosto do álcool, tampouco do tabaco.
Quando eu penso na minha adolescência, eu vejo que deveria ter fumado. Todos os meus amigos fumavam. Todo o mundo fumava. Era normal. Eu não. Hoje em dia é diferente. Hoje o governo faz propaganda, e
todos acreditam que o corpo deve durar para sempre. Seria bom, pensando bem. Pena que não ocorra. Mas tudo bem.
Saí de casa bem antes das nove da manhã. Andei um pouco ali pela rua dos jacarandás, meio sem rumo, mesmo, observando os poucos transeuntes que me acompanhavam na caminhada matinal. Passam poucos carros por aquela rua, mesmo durante a semana, e eu gosto disso. Algumas bandeiras, tanto azuis quanto vermelhas, enfeitam algumas sacadas, mas, graças a Deus, a algazarra ainda não começou.
As pessoas não sabem mais torcer, hoje em dia. Eu queria ainda trabalhar no rádio; se ainda o fizesse, diria o que penso sobre as torcidas de hoje em dia. Acho que vou passar a manhã no parque. Meus filhos vieram semana passada.
Eles nunca vêm duas semanas seguidas. A rua é um pouco inclinada; quase uma lomba, mesmo. Ainda bem que não chove há bom tempo.
Lá vem a Dona Neuza subindo, cheia de compras. Ela sempre sai de manhã cedo no domingo e vai à feira. Já a vi resvalar e cair duas vezes. Espero que ela não caia hoje; não quero me obrigar a subir essa quase-lomba novamente. Realmente, ainda bem que não chove há bom tempo.
- Oi, Seu A-Antônio.
Ela ofegou. Provavelmente para que eu me oferecesse para ajudá-la.
Não estou bem disposto hoje. Cumprimentei-a erguendo o chapéu. Eu deveria ter dito que estava de chapéu. Segui meu passo.
Quando eu era mais novo, já disse, tinha pretensões de escrever um livro. Passava pelas ruas criando personagens para cada pessoa que visse. Era um exercício interessante. Meus heróis nunca eram os mais bonitos. Mas as mocinhas, ah, essas sim, eram sempre lindas.
- Tá na fatiota hoje, heim, Seu Antônio?
O Jorge. Acho que ele não seria um bom personagem. É meio bicho grilo; eu nem dou muita trela.
Ele estava fumando.
Eu deveria mesmo ter fumado. Eu talvez já estivesse morto hoje em dia – quem pode dizer? –, mas a adolescência teria sido mais fácil. O Freire morreu ano retrasado, de câncer. O Wálter morreu ainda nos anos 1980, por problemas cardíacos. Os médicos disseram que foram agravados pelo cigarro.
A Renata não fumava e morreu atropelada, quando nós ainda estávamos no colegial. Eu lembro do enterro dela. Eu gostava dela. E tinha vergonha de chorar na frente dos meus amigos, então eu ficava pensando em futebol. No final, todo mundo acabou chorando, enquanto eu escalava o time do Grêmio de cabeça e pensava nas jogadas do Gessy. Eu deveria ter chorado no enterro da Renata.
E lá vem aquele judeu, o Seu Klein; matou a esposa quatro anos atrás e, pasmem, foi acobertado pela mãe dela. Claro que todos pensam que foi um assalto, ou coisa que o valha; ninguém mais sabe que foi o Seu Klein. Ele se sente culpado, às vezes. Por isso parece sempre tão triste.
A parada é logo ali, dobrando a esquina.
Um rapaz de cadeira de rodas. Vou chamá-lo de João Eduardo. Ficou nesse estado quando tinha seus 16 anos. Foi atropelado quando salvava o cachorro da namorada, um poodle chamado Alfredo, pulando na frente de um Opala. Alfredo morreu dois anos depois. Ela encontrou o amor com outro homem. Ele continua sozinho desde então.
O ônibus vem vindo. Espero que ele pare para mim.
Não gosto de ônibus. Alguns dias atrás, um homem, já senhor, me ofereceu o assento. Eu não pude aceitar, aguento-me bem de pé, graças a Deus.
Mas estou ficando velho.
Hoje estava vazio; sentei-me.
Uma guria, de blusa branca, parou bem na minha frente, para pegar o telefone na bolsa. Eu consegui ver o sutiã que ela usava por debaixo da blusa. Tinha estrelinhas arroxeadas.
Me senti um pervertido só por olhar, mas não pude evitar. Que idade teria ela? 18? Talvez nem 15. Há quanto tempo eu não faço sexo? Melhor nem tentar lembrar. Eu poderia escrever sobre esse meu desejo sórdido por ela, mas acabaria uma cópia fajuta de Lolita.
Acho que eu não consigo escrever sobre os jovens. Não os de hoje em dia. Eles vivem no computador, e eu não entendo nada de computadores. E pensar que era eu quem dava jeito na antena da Tevê.
Só traí uma vez. E nem valeu a pena. Não vou contar; quase fui pego.
Desci no parque. Meus sapatos sujaram um pouco com aquela terra alaranjada, mas tudo bem.
O dia tinha ficado um pouco nublado, e eu até prefiro assim. Não tinha tanta gente. Acho que era por causa da previsão de chuva para hoje. Talvez ainda chova de tarde. Quase metade dos frequentadores dessa manhã usavam camisetas da dupla.
Não entendo mais toda essa agitação. Nada disso me faz sentido. Andei um pouco pela grama. Vi um casal carregando um bebê de colo com a camisa do Internacional.
Nem criou consciência e já tem algumas decisões tomadas por ele. O tempo vai passar, e ele vai crescer, viver e morrer. É tudo tão vão. Comprei uma pipoca. Pena que gruda nos dentes. Talvez eu jogue para os patos.
Sentei em um dos bancos que ficavam de frente para o laguinho e tirei meu chapéu.
- Ô, Seu Antônio, quanto vai ser o jogo hoje?
Nem pensei a respeito. Mas gosto que me perguntem.
- Dois a zero pro tricolor.
Quando eu trabalhava no rádio, não podia expor para que time eu torcia. Pena eu ter essa garganta maldita. Mas agora eu posso. É melhor assim.
De qualquer forma, acho que o futebol me deprime. Uma criança veio correndo, passou por mim e tropeçou. Acho que ralou o joelho. Abriu o berreiro. O pai veio atrás acudir; “pronto, pronto, já passou. Já passou, já passou.”
É tudo tão vão.
Dois anos atrás, eu estava no médico. Ele me apontava o peito, na região do coração, e me dizia: “a sua dor está aqui”.
Três semanas atrás, e eu tive meu primeiro princípio de infarto, à mesa, no almoço de Domingo.
“A sua dor está aqui.” Como será que fica o parque num Domingo, na hora do Grenal? A cidade não para. Era o meu bordão favorito no rádio; “a cidade parou pra assistir a esse jogo.” Sempre parava. Os pais vêm e trazem seus filhos para andar no pedalinho?
A cidade não para. Queria poder ficar para ver. Vou voltar para casa só na hora do almoço. Ou talvez à tarde. Nem sei.
A minha dor está aqui.
E em todo lugar.
Autor Desconhecido