4.12.12

A Noite dos Capitães


A Noite dos Capitães da Areia

“E pensou, contraindo seu rosto pequeno, que talvez por isso ele nunca tivesse pensado em rezar, em se voltar para o céu de que tanto falava o padre José Pedro quando vinha vê-los. O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santo, nas flores murchas que trazia para Nossa Senhora das Sete Dores, como um namorado romântico dos bairros chiques da cidade traz para aquele a quem ama com intenção de casamento. Mas o Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de uma exaltação. Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. [...]
Confusamente desejava ter uma bomba (como daquelas de certa história que o Professor contara) que arrasasse toda a cidade, que levasse todos pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves, que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom, um sono que não estivesse cheio dos sonhos da noite na cadeia. Assim ficaria alegre, o ódio não estaria mais no seu coração. E não teria mais desprezo, inveja, ódio de Pirulito que, de mãos levantadas e olhos fixos, foge do seu mundo de sofrimento para um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro.”

Jorge Amado, em Capitães da Areia.

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