“As mentiras corroem a compreensão das crianças. Mentir é a regra, e não a exceção, quando se trata de assuntos humanos. Todos temos presente o fato de que nos são ditas mentiras por aqueles que nos governam, aqueles que nos cercam e aqueles que constantemente tentam nos convencer a gastar nosso dinheiro em seus produtos, quer os necessitemos quer não. Mas somos menos inclinados a tomar conhecimento do fato de que a mentira é mais comum do que o dizer a verdade em nossas relações cotidianas. (…)
Se, em acréscimo às descaradas mentiras contadas às crianças, considerarmos as meia-verdades e as omissões de verdades às quais elas são sujeitas, é claro que a mentira constitui uma dimensão básica da experiência da criança. É preciso um longo período de treinamento, durante a infância e adolescência, para acostumar os seres humanos a mentir e aceitar mentiras sem protestar. Contam-se mentiras instituídas quando se diz às crianças que a cegonha traz as crianças, que o papai noel traz os presentes, e quando se dão explicações falsas sobre o que acontece em suas vidas diárias. Também são ditas mentiras por omissão, quando são afastadas de informações consideradas fortes demais, ou prematuras para as suas mentes ‘delicadas’.
Quando uma criança pergunta a um dos pais ‘Como nascem os bebês?’, é uma mentira clara dizer ‘A cegonha os traz’. Mas também é mentira dizer ‘Eles simplesmente saem da barriga da mãe’, ou mudar de assunto. Os pais possuem a informação que a criança deseja. No sentido de ser sincero, ou o pai deve dar a informação, ou, sem mentir, explicar porque ela não é dada: ‘Estou embaraçado em lhe contar’ não é uma mentira. ‘Você é jovem demais para entender’ é mentira. ‘Estou com medo que você fique perturbado’ não é mentira. ‘Eu lhe direi quando você estiver preparado’ é mentira.
A verdade é muito rara entre os seres humanos; mas de adultos para crianças ela praticamente não existe.
Nós não devemos mentir. Ainda assim, se examinarmos esta regra, descobriremos que ela possui infinitas exceções. Apenas um tipo de mentira parece ser realmente não admissível: aquelas que contamos às pessoas que estão acima de nós (pais, professores, patrões, governo) e aquelas que nos são contadas por aqueles que estão abaixo de nós (filhos, alunos, empregados, aqueles que governamos).
Podemos mentir para os nossos alunos, filhos, empregados e constituintes. Esperamos que nossos pais, professores, patrões e políticos nos mintam.
As crianças acreditam naquilo que se lhes diz. Quando as coisas que lhes dizemos como verdades se contradizem, isto ‘embaralha o computador’ delas, e faz com que se sintam bobas e idiotas.
Afirmações e mentiras podem ser feitas verbalmente, mas podem também serem feitas com gestos. Uma pessoa pode fazer verbalmente uma afirmação, e negá-la com um gesto. Por exemplo, John se lembra que seu pai lhe dava as seguintes informações:
1) ‘Amo sua mãe.’
2) ‘Se você ama alguém não olha para outras.’
3) ‘Não tenho olhos para outras mulheres.’
John via o pai agir de maneira odiosa com a esposa e xingá-la, e sabia que ele olhava para uma vizinha porque tinha visto os dois se beijarem na lavanderia. Pelo fato do pai ter mentido claramente, levantaram-se dúvidas a respeito de todas as outras afirmações.
Se espera que as crianças se tornem adultos sinceros, porém, dadas as circunstâncias da sua educação, este resultado é muito improvável. (…) A origem da espécie humana, seu funcionamento biológico, é mantida à distância do conhecimento das crianças o maior tempo possível. (...)
Assim sendo, à medida que crescemos e entramos no mundo adulto civilizado, vamos nos preparando não somente para sermos mentirosos, mas também para aceitarmos mentiras dos outros. Não é de admirar que as pessoas aceitem passivamente as mentiras de seus políticos eleitos, dos anunciadores e do meio; o treinamento é implacável desde a primeira infância.
Mentiras por omissão encontram-se armazenadas aos montes no sistema educacional, que constitui um sofisticado campo de treinamento em adiantadas formas de mentira.
Uma criança não treinada tem grande dificuldade em dizer algo que não seja verdade, bem como falhar em dizer algo verdadeiro. Tanto a expressão da falsidade como a não-expressão da verdade são atividades não-naturais. (...)
Supostamente as crianças são incentivadas a não mentir. É lhes dito que mentir não é bom. Quando mentem ou são surpreendidas mentindo, são punidas ou passam vergonha. As crianças honestas são, a meu ver, apenas crianças que aprenderam a mentir habilmente (como os adultos); e apenas aquelas que não aprenderam a mentir de maneira aceitável, sendo grosseiras e indiscriminadas em suas mentiras, recebem punição. Em outras palavras, a ‘honestidade’, da forma como é ensinada pelos adultos às crianças, é simplesmente um modo sofisticado de mentir".
Do livro “Os Papéis que Vivemos na Vida”
Nenhum comentário:
Postar um comentário