22.11.11

O Roubo da Pipa

O roubo da pipa
Quando era garoto, o menino Nicolao soltava pipa. Aqui mesmo pelas bandas da baixada fluminense, nos arredores de Itaguaí, pertinho da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Nicolao era aquele tipo de garoto que não se contentava em ver a pipa subir, ele queria ir junto com ela. A pipa ia, Nicolao se agarrava nela e se imaginava flutuando. Subia a pipa! Elevava-se Nicolao. De gozo em gozo, Nicolao ia como se não comandasse a pipa. Era a pipa que o embalava e levava.

Não havia quem não se admirasse do modo como Nicolao lidava com a pipa. Os outros meninos mantinham a pipa ali, sob a batuta de uma regência disciplinada, seguindo a pentagrama. Diferente, Nicolao não respeitava nenhuma clave de sol no seu caminho. Que pentagrama que nada! A pipa não era regida senão por uma incrível engenhoca que parecia estar no cérebro dos deuses. A pipa ia para um lado e lá também ia o Nicolao. Quando a pipa ia para outro, lá junto, descabelado e feliz ia o Nicolao.

A pipa sem comando, mas comandante, uma bela tarde levou Nicolao em direção ao poente, e atracou numa nuvenzinha marota, solitária, lá no alto do céu, bem na direção de uma touceira de bambu. Lá em baixo, balançando no fim do fio, o menino Nicolao foi se acomodando pelas folhas no chão, na sombra do bambuzal. Ali ficou, ronronando e comendo aqui e ali aquele azedinho do final de tocos de capim comprido. Nicolao sentia-se não só livre, mas em contato com todos os seres do universo que a Humanidade jamais ouvira falar e sequer pensar.

Foi aí que, inesperadamente, de dentro da touceira surgiu um moleque negro feito carvão molhado, com um barretinho vermelho na cabeça e uma enorme beiçola pendurada num cachimbo. Nicolao esfregou os olhos para ver se estava mesmo acordado, mas nem deu tempo dele certificar-se e … vupt! Lá se foi o garoto pelo buraco do nada. Por alguns segundos, Nicolao tentou ver se o moleque estava ao redor dele, mas não, havia mesmo sumido. Foi então que fazendo um gesto característico, ele puxou o fio da pipa, mas nenhuma resposta veio. Que pipa que nada, o pula-pula de cachimbo havia levado o amor do Nicolao, sua passagem para a terra dos sonhos.

Muitos anos depois, já adulto, Nicolao contou ao seu analista esse sonho. E eis que a terapia parou ali, e até hoje não foi retomada. O analista encasquetou! Ele quer porque quer saber qual a razão do ladrãozinho de pipa ter duas pernas! E eis que aquele garoto do bambu, ao final, acabou roubando também o analista do Nicolao.

Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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