Ao iniciar uma análise pessoal ao filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, não é possível abstrair-me da totalidade da obra do realizador. Kubrick é um autor global, cuja obra não se restringe a um único filme. Há uma panóplia de temas que atravessam a sua filmografia, sendo o tempo e o universo circular duas das premissas inultrapassáveis.
Ao mesmo tempo, Kubrick é um iconoclasta, é sarcástico, irónico, com um sentido de humor perfeitamente estranho e que nos prende desde o início. A sua crítica mordaz não poupa instituições tão díspares como a Igreja, o Estado, o Exército ou a Polícia.
Numa curta análise, Laranja Mecânica é a história de um Jovem, Alex De Large, cujas principais inclinações são a violência, o sexo e Beethoven. Depois de vários actos de "ultra-violence" perpetrados por Alex e pelos seus companheiros, o primeiro acaba por ser traído por eles, o que fará com que seja encarcerado. Começa aí a segunda parte do filme. Depois de cumprir dois anos da pena a que havia sido condenado, Alex oferece-se como voluntário para um processo inovador do governo, o Tratamento Ludovico, após o qual Alex fica incapacitado de exercer qualquer tipo de violência sobre os outros. Para além de não poder ver actos de violência, sofre, igualmente, de incapacidade sexual e, acidentalmente, deixa de poder ouvir Beethoven, o seu compositor preferido. Depois de libertado Alex é vítima da vingança das suas anteriores vítimas, até que, depois de ter sobrevivido a uma tentativa de suicídio, Alex é aproveitado pelo governo para a campanha eleitoral que se adivinha. Em mais um final misterioso, algo em que Kubrick é pródigo, Alex aceita servir o ministro, ao mesmo tempo que lhe deita um olhar pleno de malícia.
O olho e o olhar, o sexo e a violência, o papel do Estado e a maneira pouco democrática como este actua sobre os cidadãos, o gozo com a polícia, todas estas premissas atravessam Laranja Mecânica e obrigam-nos a pensar e a meditar. Todos estes tópicos seriam merecedores de teses autênticas, e Kubrick consegue fazer passar a sua mensagem graças à encenação perfeita, aos planos fabulosos, ao uso único que dá à câmara lenta, a uma direcção de actores incrível e à utilização da música, muitas vezes para dar um toque de humor ao filme (como a composição Guilherme Tell, usada para a cena da orgia em plano acelerado; ou a marcha Pompa e Circunstância que irrompe quando o ministro faz a sua aparição).
Na minha análise pessoal, Kubrick é um dos poucos realizadores marxistas, ainda mais do que os cineastas neo-realistas. Nunca precisou de assinar manifestos ou de marchar em protestos para assumir a sua ideologia que aparece de forma sub-reptícia na sua filmografia. Marx, que sempre assumiu a luta do proletariado contra a máquina capitalista, vê esta mensagem impressa nos filmes de Kubrick, uma vez que os seus heróis lutam, igualmente, contra as várias máquinas que a sociedade coloca nos seus caminhos, sejam elas a máquina política, a máquina militar, a máquina religiosa, ou mesmo a máquina capitalista. Ao mesmo tempo, a sexualidade, a libertação máxima do ser humano, e por isso mesmo tão reprimida pela Igreja e pelo Estado, surge nos filmes de Kubrick como catarse libertadora de preconceitos e maquinações, do que Eyes Wide Shut é o exemplo perfeito.
Sobre Kubrick disse Claude Michel Cluny (Dictionnaire du Cinéma) : "o que é evidente, quando se revê o conjunto da obra, é que não apenas ela nunca aparece como ilustração de uma tese, mas, pelo contrário, na sua complexidade e na sua diversidade, como uma criação visionária e pessimista de uma rara intensidade poética. Nada do que é inquietante na natureza humana lhe é estranho".
A este nível, e embora não seja propriamente um poeta do macabro, Kubrick e o seu universo poderiam, com relativa facilidade, integrar um círculo composto por autores como Polanski, Lynch, Cronenberg ou mesmo os irmãos Coen.
Habitualmente Kubrick faz-nos acompanhar o percurso errante e expiatório de homens solitários que arriscam tudo nas mãos da sorte, em circunstâncias que lhes são adversas. A lista de exemplos é interminável. Tanto pode ser o gladiador revolucionário que dá o título a Spartacus, como o professor de meia-idade que a tudo se sujeita para poder estar junto da adolescente por quem se sente obcecado em Lolita. Ou a personagem sinistra e megalómana que é o Dr. Estranho Amor, ou o astronauta dominado pelo computador em 2001, ou Alex, diabólico marginal com um toque de classe, qual bola de futebol de um jogo político, ou o igualmente oportunista e arrivista Barry Lyndon, movendo-se entre um casamento de conveniência, alguns jogos de salão e muitos duelos. Ou em Shinning, o escritor em início de carreira, disposto a passar seis meses com a mulher e o filho isolados do mundo pela neve, num gigantesco hotel assombrado, que o vai transformar num ser demoníaco, mas que o atrai irresistivelmente desde o primeiro momento. Ou a aventura de um jovem durante a recruta, e logo a seguir na selva do Vietname em Nascido para Matar, ou ainda o Dr. William, um ser desfeito pelas dúvidas que o atormentam em relação à sua mulher e à sua própria sexualidade em Eyes Wide Shut... Nem heróis exultantes nem perdedores desencantados, antes um misto dos dois, um ser híbrido, reflexo dos arquétipos platónicos ou dos Minotauros que volteiam nos labirintos.
"A metamorfose da personalidade deve ser acompanhada de uma metamorfose profunda da sociedade."
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