30.4.12

Conclusões de Aninha

Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?

Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.

Cora Coralina

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O Amor

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Clarice Lispector

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O Livro da Solidão

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.

Cecília Meireles

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29.4.12

Ilhas do Estreito de Torres

As Ilhas do Estreito de Torres são um grupo de cerca de 100 ilhas localizadas nessa faixa de mar entre a Austrália e a Nova Guiné, o Estreito de Torres. As ilhas são parte do estado de Queensland, e contam com um número pequeniníssimo de habitantes (em torno de 8.000). E quem nunca sonhou com uma ilha paradisíaca deserta?

Com uma cultura aborígene totalmente preservada, as ilhas encontram-se a uma curta distância da famosa e turística Grande Barreira de Corais da Austrália. A ilha de Thursday é o centro da região e tem hotéis e acesso aéreo. Há a ilha Horn, com 585 habitantes segundo o censo de 2006, e a Ilha do Príncipe de Gales, esta com 20 habitantes segundo o censo de 2001.

As ilhas menores permitem visitas, mas sob autorização prévia de um mês, outorgada pela autoridade regional. Acho que já deu para perceber. Combinar o clima australiano e ilhas desertas é tudo que se precisa para as férias perfeitas. Quer ir comigo?




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Vou-me Embora...

Vou-me embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.




Vou-me embora de Pasárgada
Millôr Fernandes

Vou-me embora de Pasárgada
Sou inimigo do rei
Não tenho nada que eu quero
Não tenho e nunca terei

Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
A existência é tão dura
As elites tão senis
Que Joana, a louca da Espanha
Ainda é mais coerente
Do que os donos do país.

A gente só faz ginástica
Nos velhos trens da central
Se quer comer todo dia
A polícia baixa o pau
E como já estou cansado
Sem esperança num país
Em que tudo nos revolta
Já comprei ida sem volta
Pra outro qualquer lugar
Aqui não quero ficar,
Vou-me embora de Pasárgada.

Pasárgada já não tem nada
Nem mesmo recordação
Nem a fome e doença
Impedem a concepção
Telefone não telefona
A droga é falsificada
E prostitutas aidéticas
Se fingem de namoradas
E se hoje acordei alegre
Não pensem que eu vou ficar
Nosso presente já era
Nosso passado se foi.

Dou boiada pra ir embora
Pra ficar só dou um boi
Sou inimigo do rei
Não tenho nada na vida
Não tenho e nunca terei
Vou-me embora de Pasárgada.

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Dualidade

É o Yin Yang, juro! ~Ç

Foto de Bruno Gorski

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28.4.12

My Funny Valentine

Anita Baker


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O Dia da Criação

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem

Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.


II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.

Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.

Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.

De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.


III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,

Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo

E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinícius de Moraes

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27.4.12

Horton e o Mundo dos Quem

Um vida é uma vida, não importa o seu tamanho.
Essa é a frase que é repetida ao longo da animação algumas vezes. Tudo isso porque Horton, o paquiderme mais simpático que já esteve nas telinhas, descobriu vida numa partícula de poeira. Sim! É a Quemlândia, um mundo habitado pelos Quem, que sempre viveram normalmente em sua pacata cidade. Seu prefeito se comunica com Horton e este irá ajudá-los a encontrar um lugar seguro para seu mundo. Mas, logicamente, ninguém na floresta acredita no elefante. A história então se forma com uma perseguição ao Horton enquanto ele tenta encontrar um lugar seguro para os habitantes daquele microuniverso.
Para as crianças, divertido. Mas os mais velhos perceberão melhor que a Blue Sky Studios fez um ótimo trabalho com Horton e o Mundo dos Quem. A ideia de um mundo num grão de poeira que leva ao questionamento do nosso tamanho no universo, as discussões em torno da possibilidade de se acreditar em algo improvável, todos os simbolismos, fazem do filme uma grande mesa de discussões. São frases marcantes (como quando Horton diz "mesmo que você não possa ver ou provar algo, não significa que não existe"), e cenas divertidas e inesquecíveis. O final é surpreendente, mas não contarei. Fica para o leitor a dica.


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Como nasce uma história

Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.

— Sétimo — pedi.

Eu estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as secretárias daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que, desvanecedoramente para mim, haviam-me incluído entre as celebrações.

A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia:

É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.

Desde o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do infinito pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente já não me lembrava. Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro de concordância.

Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se preza.

Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria! Quantas vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este:

É expressamente proibido os funcionários...

Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria antes a maneira ambígua pela qual isto era expresso:

. . . no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.

Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição:

É proibido subir para depois descer.

É proibido subir no elevador com intenção de descer.

É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo.


Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que experimente, para ver só. Tem de ser bem simples:

Se quiser descer, não torne o elevador que esteja subindo.

Mais simples ainda:

Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo.

De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada:

Se quiser descer, não suba.

Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor.

Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro.

— Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei.

O ascensorista protestou:

— Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.

Os outros passageiros riram:

— Ele parou sim. Você estava aí distraído.

— Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu — reafirmou o ascensorista.

— Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso.

Ele abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram.

— Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o último andar e na volta descer parando até o sétimo.

— Não é proibido descer no que está subindo?
Ele riu:

— Então desce num que está descendo.

— Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elevador vem só até o décimo quarto.

— Para subir. Para descer, sobe até o último.

— Para descer sobe?

Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo.

Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do ascensorista, recebendo-me a rir:

— O senhor ainda está por aqui?

E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutos de atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar:

— Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.

Fernando Sabino

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26.4.12

Gandhi

Mahatma Gandhi has become the spokesman for the conscience of all mankind. He was a man who made humility and simple truth more powerful than empires.
George C. Marshal

Generation to come will scarce believe that such a one as this ever in flesh and blood walked upon this earth.
Albert Einstein

Mohandas Karamchand Gandhi, dito Mahatma, que em sânscrito significa "grande alma", foi um dos idealizadores e fundadores do moderno Estado indiano e um defensor do princípio da não-violência (Ahimsa) e da verdade (Satya) como um meio de protesto. Ele acreditava na desobediência pacífica, em deixar a injustiça visível, e assim levar os dois lados a encontrarem uma solução sem usar a força. “Pode garantir-se que um conflito foi solucionado segundo os princípios da não-violência se não deixa nenhum rancor entre os inimigos e os converte em amigos”
Seus ideais e ideias revolucionários levam a questionamentos do homem até hoje. Para os que não conhecem, recomendo o filme Gandhi. Procure conhecer Mahatma Gandhi e entenda como um homem, de carne e osso, como diria Einstein, mudou o mundo.
Fica a dica.


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Rosas num Pote Verde

Tempo: coisa que acaba de deixar o querido leitor um pouco mais velho ao chegar ao fim desta linha.

Rosas num Pote Verde
Lygia Fagundes Telles
Lá estão elas, lá estão elas. No alto da rampa, à esquerda de quem entra, na sala mais visitada desta 5ª Bienal, está o quadro. E no quadro, o pote. E no pote, as rosas: Rosas num pote verde.
Chegam as moças de calças compridas e olhos bistrados, acompanhadas de rapazes de cabelos em desalinho e suéter displicentemente atirado ao ombro.
Olham, olham tudo com uma expressão vagamente irônica, fazem observações divertidas e assim como vieram, no mesmo andar de eterna disponibilidade, passam. Chegam os intelectuais, silenciosos e compenetrados, levam a mão ao queixo, aproximam-se, afastam-se, apertam os lábios afeitos ao rito entre complacente e desdenhoso ante a ignorância dos visitantes em redor, "ali o que mais me exaspera é a burrice!..." Passam. Chegam os colegiais de meias grossas e uniforme azul e branco. Chegam irrequietos, falantes; depois, aos poucos, vão perdendo a alegria e é já em meio de uma total perplexidade que ouvem - a boca ligeiramente aberta, o olhar vazio - as explicações da monitora, moça tão esclarecida quanto modesta, tentando - e inutilmente - disfarçar a erudição com aquele jeito assim de quem pede desculpas, "mas é que eu sou mesmo tão culta!..." Também passam. Chegam os pais de família com a mulher de ar enfastiado e filhos de ar mais enfastiado ainda, as mãos enfurnadas nos blue jeans, o olhar infeliz, "estou com sede, mãe..." O pai promete-lhe uma coca-cola, "mas depois, ouviu bem? Agora vamos ver os quadros, vocês precisam desde cedo se ilustrar um pouco, também a vida não é só futebol..." E procura despertar o interesse da mulher: "Este, meu bem, é Van Gogh, considerado um dos melhores pintores do mundo. Foi um homem esquisitíssimo, chegou um dia - baixa o tom de voz - a cortar uma orelha para dar de presente à amante...". O primogênito aproxima-se: "Cortou o quê?"
A mulher afasta-o, impaciente. Imagine se isso é conversa para criança! Suspira, cansada, e se apóia ao braço do marido, "andar nesta bienal com estes saltos; eu devia ter vindo com os sapatos de feira". O homem insiste em exibir os fragmentos que lhe ficaram na memória de um artigo que leu sobre o pintor:
"Era meio louco; vivia solto pelos campos, pintando sem parar, até que um dia, num acesso mais forte, deu um tiro no peito..." Atalha-o a mulher, subitamente animada, ah! sim, lembrava-se agora, tinha visto o filme, "quem fez o papel foi aquele Kirk Douglas, não foi? Ele trabalhou com uma barba ruiva e um chapéu de palha desabado, estava feio demais, gostei mais dele quando trabalhou com a Silvaria Mangano naquela outra fita em que ele é um guerreiro..." O homem responde que não se lembra de nada. Está agora de mau humor, a mania que ela tem de não prestar a mínima atenção ao que ele diz. E o menino a se queixar de sede, "será que você não pode esperar um pouco, não pode?" Passam. Como os outros, como todos os outros, também eles passam.
Ficam as rosas. Ficam as tristes, as desesperadas rosas dentro de um pote verde. De que cor são elas? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Não poderei vos dizer. Ninguém, ninguém no mundo poderá vos dizer de que cor exatamente são essas rosas. Porque, se vistas de uma certa distância nelas prevalece o tom rosado, ao nos aproximarmos, veremos que há também muito vermelho coagulado nas corolas. E será preciso chegar um pouco mais perto para descobrirmos então o amarelo rompendo por entre o vermelho, e de mistura com o amarelo, laivos arroxeados e por entre os laivos, como num milagre, o branco que de tão branco tem reflexos azulados. Há todas as cores empastadas nas corolas atrozes e que saltam da tela num intumescimento de carne.
Rosas num pote verde. Tão simples, não? Tão inocente. Contudo, há mais dor nessas rosas do que no retrato do velho sentado numa cadeira, chorando. O velho tem o rosto tapado com as mãos e está chorando aquele choro silencioso que ninguém pode ouvir.
E, se esconde a face, não consegue esconder os pobres sapatos frouxamente desamarrados e que têm a mesma expressão da face descoberta. Pois nas corolas também expostas, no labirinto sem saída das corolas há mais tristeza ainda do que a tristeza mansa daqueles sapatos. É que no labirinto das rosas há uma procura feroz, desesperada. É que nas feridas das pétalas, nesse empastado rastro de tinta, de mistura com a fuga há uma busca. E os sapatos do velho chorando na cadeira já não buscam mais nada.
Rosas num pote verde. Aproximai-vos delas, aproximai-vos e vereis que as bordas das pétalas estouram como lábios gretados na mais cruciante das sedes: a sede do amor.
Ele era feio, pobre e só. Quis tanto amar, amou, mas justamente as criaturas amadas, se não o repeliram, fizeram-lhe mais mal ainda demonstrando compaixão. Buscou Deus, Ele devia estar na natureza, quis mesmo vê-Lo quando a cara vermelha, os olhos queimados - subia no topo das árvores e lá ficava como um girassol louco voltado para a luz.
Rosas num pote verde. Aproximai-vos delas e tereis o retrato do desespero do homem na solidão.
Aproximai-vos que essas não são rosas comuns. Atentai para suas pétalas, atentai, e vereis então que elas vertem sangue.

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25.4.12

A Barata

Tendo voltado tarde para casa, esmaguei uma barata que, no corredor, me escapava entre os pés (ficou lá, preta, no ladrilho) depois entrei no quarto. Ela dormia. Deitei-me ao seu lado, apaguei a luz, da janela aberta via um pedaço de parede e o céu. Fazia calor, não conseguia dormir, velhas histórias renasciam dentro de mim, dúvidas também, uma genérica desconfiança no amanhã. Ela soltou um pequeno lamento. "Que houve?", perguntei. Ela abriu um olho, grande, sem me ver e murmurou: "Tenho medo." "Medo de quê?", perguntei. "Tenho medo de morrer." "Medo de morrer? Por quê?" Respondeu: "Tive um sonho..." Aproximou-se um pouco. "Mas que é que você sonhou?" "Sonhei que estava no campo, estava sentada na margem de um rio e ouvi gritos ao longe... E eu devia morrer." "Na beira de um rio?" "Sim.", respondeu "Ouvia as rãs... faziam crá, crá." "E que horas eram?" "Era noite e ouvi gritar." "Bem, durma, agora são quase duas horas." "Duas horas?", mas não conseguia compreender, já tornara a pegar no sono.

Apaguei a luz e ouvi alguém remexendo no pátio. Depois, subiu a voz de um cão, aguda e longa; parecia lamentar-se. Subiu, passando diante da janela, perdeu-se na noite quente. Depois abriu-se uma persiana (ou se fechou?). Longe, muito longe, mas talvez eu me enganasse, uma criança se pôs a chorar. Depois, novamente o ulular do cão, longo como antes. Eu não conseguia dormir.

Vozes de homens vieram de alguma outra janela. Eram baixas, como murmuradas entre o sono. De uma sacada abaixo, ouvi um cip, cip, zitevitt, e algumas batidas de asas. "Flório!", ouviu-se chamar de repente, devia ser duas ou três casas mais adiante. "Flório!", parecia uma mulher, mulher angustiada, que tivesse perdido o filho.

Mas por que o canarinho do andar de baixo acordara? Que havia? Com um rangido lamentoso, como se fosse empurrada devagarinho por alguém que não queria fazer-se ouvir, uma porta se abriu em algum lugar da casa. Quanta gente acordada a essa hora, pensei. Estranho, a essa hora.

"Tenho medo, tenho medo", queixou-se ela procurando-me com o braço. "Oh, Maria", perguntei, "Que tem você?" Respondeu com voz tênue: "Tenho medo de morrer." "Você sonhou de novo?" Fez que sim, devagarinho, com a cabeça. "De novo aqueles gritos?" Fez sinal que sim. "E você ia morrer?" Sim, sim, indicava, procurando olhar-me, com as pálpebras grudadas pelo sono.

Há alguma coisa, pensei: ela sonha, o cão uiva, o canarinho acordou, as pessoas se levantam e falam, ela sonha com a morte, como se todos tivessem sentido uma coisa, uma presença. Oh, o sono não vinha e as estrelas passavam. Ouvi distintamente no pátio o ruído de um fósforo aceso. Por que alguém se punha a fumar às três horas da manhã? Então senti sede, levantei-me e saí do quarto para beber água. A triste lâmpada do corredor estava acesa, percebi vagamente a mancha preta no ladrilho e parei, assustado. Olhei: a mancha preta se movia.Ou melhor, movia-se um pedacinho (ela sonha que vai morrer, o cão uiva, o canarinho acorda, pessoas se levantaram, uma mãe chama o filho, as portas rangem, alguém fuma, e há talvez um choro de criança).

Vi, no chão, o bichinho preto que movia uma patinha. Era a do meio, à direita. O resto estava imóvel, uma mancha de tinta que caíra da morte. Mas a perninha remava fracamente como se quisesse subir de novo alguma coisa, o rio das trevas, talvez. Teria ainda esperança?

Durante duas horas e meia, dentro da noite — senti um calafrio —, o imundo inseto grudado no ladrilho pelas suas próprias mucilagens viscerais, durante duas horas e meia continuara a morrer e ainda não acabara. Maravilhosamente continuava a morrer, transmitindo, com a última patinha, a sua mensagem. Mas quem a podia colher às três da manhã, na escuridão do corredor de uma pensão desconhecida? Duas horas e meia, pensei, continuamente para cima e para baixo, a última porção de vida na perninha sobrevivente, para invocar justiça. O pranto de uma criança — lera um dia — basta para envenenar o mundo. Em seu coração, Deus onipotente quisera que certas coisas não acontecessem, mas não pôde impedi-lo porque por ele mesmo foi decidido. Mas uma sombra jaz ainda sobre nós. Esmaguei o inseto com o chinelo e, esfregando no chão, esmigalhei-o num longo rasto cinza.

Então, finalmente, o cão calou-se, ela, no sono, se acalmou e parecia quase sorrir, as vozes se apagaram, calou a mãe, não se percebeu mais nenhum sintoma de inquietude do canarinho, a noite recomeçava a passar sobre a casa cansada, a morte fora inchar sua inquietude em outras partes do mundo.


Dino Buzzati

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24.4.12

Valsa

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias do mundo...
- Os ares fogem, viram-se águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Cecília Meireles

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23.4.12

Sobre a Escrita

Hoje, no Dia Mundial do Livro, Clarice Lispector nos presenteia com mais esse texto. Sobre a Escrita...

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.

Clarice Lispector

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Time

Alan Parson (Live in Madri 2004)




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22.4.12

Caso de Canário

Carlos Drummond de Andrade

Casara-se havia duas semanas. Por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:

- Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.

- Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?

- Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá.

O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:

- Vai, meu bem.

Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.

- Primeiro me tragam um vidro de éter, e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.

Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.

E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.

Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.

No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.

- Ui!

Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?

- Ele estava precisando mesmo era de éter - concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.

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Tropical Magic

Alice Faye singing Tropical Magic


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A Ponte Suspensa de Capilano



Ao norte de Vancouver, sobre o Rio Capilano, está a Capilano Suspension Bridge, uma das principais atrações de Vancouver.
Com mais de 120 anos, com 135 metros de extensão e 70 metros acima do Rio Capilano, a ponte de mesmo nome atrai cerca de 900.000 turistas por ano que procuram a vista surpreendente de lá de cima, bem como as atrações além da ponte, como o Totem Park, a Treetops Adventure - uma trilha com sete pontes suspensas a 30 metros do chão -, o Museu, e várias outras.

São 110.000 metros quadrados de parque, no total. É uma floresta imensa que, independente da estação do ano, está sempre bela. Atravessar a ponte e aproveitar as outras atrações é obrigação dos viajantes que passam por Vancouver. Uma experiência para ficar gravada na memória. 
Vamos? ~Ç



  







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21.4.12

As Time Goes By



As Time Goes By
Luís Fernando Veríssimo

Conheci Rick Blaine em Paris, não faz muito. Ele tem uma espelunca perto da Madeleine que pega todos os americanos bêbados que o Harry’s Bar expulsa. Está com 70 anos, mas não parece ter mais que 69. Os olhos empapuçados são os mesmos mas o cabelo se foi e a barriga só parou de crescer porque não havia mais lugar atrás do balcão. A princípio ele negou que fosse Rick.
- Não conheço nenhum Rick.
- Está lá fora. Um letreiro enorme. Rick’s Café Americain.
- Está? Faz anos que não vou lá fora. O que você quer? 
- Um bourbon. E alguma coisa para comer.
 Escolhi um sanduíche de uma longa lista e Rick gritou o pedido para um negrão na cozinha. Reconheci o negrão. Era o pianista do café do Rick em Casablanca. Perguntei por que ele não tocava mais piano.
- Sam? Porque só sabia uma música. A clientela não agüentava mais. Ele também faz sempre o mesmo sanduíche. Mas ninguém vem aqui pela comida.
Cantarolei um trecho de As Time Goes By. Perguntei:
- O que você faria se ela entrasse por aquela porta agora?
- Diria: “Um chazinho, vovó?” O passado não volta.
- Voltou uma vez. De todos os bares do mundo, ela tinha que escolher logo o seu, em Casablanca, para entrar.
- Não volta mais.
Mas ele olhou, rápido, quando a porta se abriu de repente. Era um americano que vinha pedir-lhe dinheiro para voltar aos Estados Unidos. Estava fugindo de Mitterrand. Rick o ignorou. Perguntou o que eu queria além do bourbon e do sanduíche do Sam, que estava péssimo.
- Sempre quis saber o que aconteceu depois que ela embarcou naquele avião com Victor Laszlo e você e o inspetor Louis se afastaram, desaparecendo no nevoeiro.
- Passei quarenta anos no nevoeiro - respondeu ele.
Objetivamente, não estava disposto a contar muita coisa.
- Eu tenho uma tese.
 Ele sorriu.
- Mais uma...
- Você foi o primeiro a se desencantar com as grandes causas. Você era o seu próprio território neutro. Victor Laszlo era o cara engajado. Deve ter morrido cedo e levado alguns outros idealistas como ele, pensando que estavam salvando o mundo para a democracia e os bons sentimentos. Você nunca teve ilusões sobre a humanidade. Era um cínico. Mas também era um romântico. Podia ter-se livrado de Laszlo aos olhos dela. Por quê?
- Você se lembra do rosto dela naquele instante?
Eu me lembrava. Mesmo através do nevoeiro, eu me lembrava. Ele tinha razão. Por um rosto daqueles a gente sacrifica até a falta de ideais. A porta se abriu de novo e nós dois olhamos rápido. Mas era apenas outro bêbado.

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20.4.12

No restaurante

- Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.
- Meu bem, venha cá.
- Quero lasanha.
- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.
- Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:
- Vou querer lasanha.
- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
- Gosto, mas quero lasanha.
- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
- Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:
- Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.
A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:
- Moço, tem lasanha?
- Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
- O senhor providenciou a fritada?
- Já, sim, doutor.
- De camarões bem grandes?
- Daqueles legais, doutor.
- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?
- Uma lasanha.
- Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.
- Estava uma coisa, heim? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado?
- Agora a lasanha, não é, papai?
- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
- Eu e você, tá?
- Meu amor, eu...
- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.

Carlos Drummond de Andrade

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Little Green Apples

Letra de Bobby Russel gravada por Glen Campbell e Bobbie Gentry.





Gravação de Dean Martin



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19.4.12

Apenas Um Saxofone

O texto que segue me faz chorar sempre que o releio. E divido com meus leitores essa experiência edificante e desconcertante que é conhecer Lygia Fagundes Telles.
Feliz aniversário, Lygia.

Anoiteceu e faz frio. "Merde! voilá l’hiver", é o verso que, segundo Xenofonte, cabe dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher. Logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabe grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas, mas não sei o que fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras da Virgem de Fra Angelico, tinha paixão por Fra Angelico.

Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira, mas despedi o copeiro, a arrumadeira, o cozinheiro – despedi um por um, me deu um desespero e mandei a corja toda embora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa, mas não é só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças de acender o cigarro. Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem devagarinho para não ficar de porre, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma coisa, vendo outra. E tem coisa a beça para ver tanto por dentro como por fora, ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o veado. Chamava-se Renê e chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, “trouxe hoje para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!” Nem o pano era do Afeganistão nem ele era tão veado assim, tudo mistificação, cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão fatigada e triste de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu, foi como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos na madeira imitando caruncho de três séculos. “Este anjo só pode ser do Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha estrábicos...” Eu concordava no mesmo tom histérico, embora soubesse perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais dez braços para conseguir fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos autênticos, “um nadinha estrábicos”, repetiu ela com voz em falsete de Renê. Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me importando, ao contrário, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Li ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borboleta... Desatei antão a chorar feito louca, não sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. “Você precisa se cuidar”, Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso nisso que ele me disse. Por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer em seguida a decoração da casa de campo, “tenho os móveis ideais para essa sua casa”, ele avisou e eu comprei os móveis ideais, comprei tudo, compraria até a peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a poeira pela qual não me cobraria nada, simples contribuição do tempo, é claro. É claro.

Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão mais puros. E despretensiosos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, só aparentemente.” Este é o meu instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: “E esta é a minha música”.

Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. “Na lareira tem que ficar seu retrato”, determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário. Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu namorado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de caracóis na testa me pintou toda de branco, uma Dama das Camélias voltando do campo, o vestido comprido, o pescoço comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele diáfano como a mortalha de um ectoplasma pairando suavíssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que eu, sem dúvida o puxa-saco do pintor era suficientemente esperto para imaginar como eu devia ser aos vinte anos. “Você no retrato parece um pouco diferente”, concedeu ele, “mas o caso é que não estou pintando só seu rosto”, acrescentou muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei na hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. “Meu nome é Luisiana”, me diz agora o ectoplasma. “Há muitos anos mandei embora o meu amado e desde então morri”.

Onde?... Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que logo na segunda aula já se deitou comigo, vinha tão humilde, tão miserável com seu terno de luto empoeirado e suas botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, vem Xenofonte, vem. “Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte”, ele me implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte, nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada, quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para não pôr no meu túmulo outro nome senão esse, ele deu risadinha execrável, “Luisiana? Mas por que Luisiana? De onde você tirou esse nome?”.

Controlou-se para não me chacoalhar por tê-lo acordado aquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para casa,”como queira, minha querida, você manda!”

E deu sua risadinha, enfim, uma puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender, foi o que provavelmente pensou.

Mas já não me importo com o que ele pensa, ele e mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre, aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas. Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinião tenho hoje um piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho chácara com piscina e papel higiênico com florinhas douradas que o velho trouxe dos Estados Unidos junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha enquanto a gente vai desenrolando o papel, “oh! My last rose of summer!...”. Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, “é preciso dourar a pílula”, disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso, senão cuspisse dólar eu já teria mandado ele para aquela parte com seus tacos de golfe e cuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola, achou originalíssimo esconde-la no fundo do aquário e me mandar procurar: “Está ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!...” E eu me fazia menininha e ria quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me deixasse em paz, me deixasse em paz! Ele, o jovem ardente com todos seus ardores, Xenofonte com seu hálito de hortelã – enxotar todos como fiz com a criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando fico para cair de bêbada.

Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude, só que naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, com o Sol, a Lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa eu respirava tão bem...

Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone estava sempre meticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes, que eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir para ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais fralda para limpar o saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas Johnson e desde então passou a usa-las para todos os fins: era lenço, a toalha de rosto, o guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos um filho. Tinha paixão por tanta coisa...

A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e fazia calor. Então fomos rolando e rindo até as primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. Preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com as mãos e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Pensei que ele estivesse brincando mas nunca o vi tão grave.

“Agora você se chama Luisiana”, disse me beijando a face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus, “Tenho paixão por Deus”, sussurrou deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar no céu: “O que me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma melodia terna e cálida. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta que grande! Olha esta agora mais redonda...ah, estourou... Se você me ama você é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que venha a polícia? Eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões.

Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, “veja em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!...” Deitei-a na cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloqüente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela não acreditava em Deus? – perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!... A mulher parou de chorar e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras, porque a melodia também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao sol.

Onde? Onde?... Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minúsculo apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que recebera o apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma terceira história, interpelei-o e ele começou a rir, “é preciso variar as histórias, Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando um caso fica a vida inteira igual...” E improvisava o tempo todo e sua música era sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, você vai compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que compõe! Ele sorria.

“Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever música e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu sou.” Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição era ter um dia um conjunto próprio. E ter também uma vitrola de boa qualidade para ouvir Ravel e Debussy.

Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras de Fra Angelico e retratos dos seus antepassados. “Não são meus parentes, achei tudo isso no baú de um porão”, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo dos retratos, tão antigo que da mulher só restava a cabeleira escura. E as sobrancelhas.

Esta você também achou no baú? Perguntei. Ele riu e até hoje fiquei sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então naquela mesa e grite com todas as forças, vocês são todos uns cornudos, vocês são todos uns cornudos! E depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, não, não, eu estava brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, “cornudos, todos cornudos!” Alcançou-me em meio da gente estupefata, “Luisiana, Luisiana, não me negue Luisiana!” Outra noite – saíamos de um teatro – não resisti e perguntei-lhe se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, vamos, se você me ama mesmo cante aqui na escada u trecho do Rigoleto!

Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mesmo, mesmo...

Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de manhãzinha.

Então limpava o bocal do instrumento, lustrava o metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem nenhum desgaste, “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem música”, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que abocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandoná-lo mas não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para trás.

Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do tamanho de um ovo de pomba... Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca que achei particularmente fina. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente.

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18.4.12

Judy Collins

Send in the Clowns


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Love me or Leave me.

Nina Simone



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A Insustentável Leveza do Ser

Trechos do livro de Milan Kundera

No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade manifesta acordo unânime.

Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: ‘tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas’, para que a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via -láctea- talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.

(…)

Tereza acaricia a cabeça de Karenin (sua cadela moribunda) que descansa tranquilamente em seus joelhos. Faz mais ou menos esse raciocínio: não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros moradores da aldeia, ou não poderia viver ali; e, mesmo com Tomas, é obrigada a se portar como mulher amorosa, pois precisa dele. Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos.

A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade ( o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar ), são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.

(…)

Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça de Karenin, e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo surge para mim outra imagem: Nietzche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços.

Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre seu cavalo.

É este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastam do caminho no qual a humanidade, ‘senhora e proprietária da natureza’, prossegue sua marcha para frente.

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17.4.12

Hora de Dormir

Fernando Sabino
- Por que não posso ficar vendo televisão?
- Porque você tem de dormir.
- Por quê?
- Porque está na hora, ora essa.
- Hora essa?
- Além do mais, isso não é programa para menino.
- Por quê?
- Porque é assunto de gente grande, que você não entende.
- Estou entendendo tudo.
- Mas não serve para você. É impróprio.
- Vai ter mulher pelada?
- Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo.
- Todo dia eu tenho.
- Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.
- Espera um pouquinho.
- Não espero não.
- Você vai ficar aí vendo e eu não vou.
- Fico vendo não, pode desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu pai.
- Os outros meninos todos dormem tarde, só eu que durmo cedo.
- Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. Já para a cama.
- Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.
- Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.
- Pode perder.
- Deixe de ser malcriado.
- Você mesmo que me criou.
- O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?
- Falo como quiser, pronto.
- Não fique respondendo não: cale essa boca.
- Não calo. A boca é minha.
- Olha que eu ponho de castigo.
- Pode pôr.
- Venha cá! Se der mais um pio, vai levar umas palmadas.
- Quem é que anda lhe ensinando esses modos? Você está ficando é muito insolente.
- Ficando o quê?
- Atrevido, malcriado. Eu com sua idade já sabia obedecer. Quando é que eu teria coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando .. . Quando ele falava está na hora de dormir, estava na hora de dormir.
- Naquele tempo não tinha televisão.
- Mas tinha outras coisas.
- Que outras coisas?
- Ora, deixe de conversa. Vamos desligar esse negócio. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.
- Chato.
- Como? Repete, para você ver o que acontece.
- Chato.
- Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai.
- E não adianta ficar aí chorando feito bobo. Venha cá.
- Amanhã eu não vou ao colégio.
- Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me comove. Anda, venha cá.
- Você me bateu...
- Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.
- Por que você é assim, meu filho? Só para me aborrecer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo, e quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?
- Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a bênção e vá dormir.
- Papai.
- Que é?
- Me desculpe.
- Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.
- Por que não posso ficar vendo televisão?

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