4.4.12

História de Passarinho

Lygia Fagundes Telles

Um ano depois os moradores do bairro ainda se lembravam
do homem de cabelo ruivo que enlouqueceu e sumiu de casa.
Ele era um santo, disse a mulher levantando os braços.
E as pessoas em redor não perguntaram nada nem era preciso,
perguntar o que se todos já sabiam que era um bom homem
que de repente abandonou casa, emprego no cartório, o filho único, tudo.
E se mandou Deus sabe para onde.
Só pode ter enlouquecido, sussurrou a mulher,
e as pessoas tinham que se aproximar inclinando a cabeça para ouvir melhor.
Mas de uma coisa estou certa, tudo começou com aquele passarinho, começou com o passarinho.
Que o homem ruivo não sabia se era um canário ou um pintassilgo.
Ô! Pai, caçoava o filho, que raio de passarinho é esse que você foi arrumar?!
O homem ruivo introduzia o dedo entre as grades da gaiola e ficava acariciando a cabeça do passarinho
que por essa época era um filhote todo arrepiado, escassa a plumagem amarelo-pálido
com algumas peninhas de um cinza-claro.
Não sei, filho, deve ter caído de algum ninho, peguei ele na rua, não sei que passarinho é esse.
O menino mascava chicle. Você não sabe nada mesmo, Pai,
nem marca de carro, nem marca de cigarro, nem marca de passarinho, você não sabe nada.
Em verdade, o homem ruivo sabia bem poucas coisas. Mas de uma coisa ele estava certo,
é que naquele instante gostaria de estar em qualquer parte do mundo,
mas em qualquer parte mesmo, menos ali. Mais tarde, quando o passarinho cresceu,
o homem ruivo ficou sabendo também o quanto ambos se pareciam, o passarinho e ele.
Ai! O canto desse passarinho, resmungava a mulher, Você quer mesmo me atormentar, Velho.
O menino esticava os beiços tentando fazer rodinhas com a fumaça do cigarro que subia para o teto:
Bicho mais chato, Pai. Solta ele.
Antes de sair para o trabalho o homem ruivo costumava ficar algum tempo olhando o passarinho
que desatava a cantar, as asas trêmulas ligeiramente abertas, ora pousando num pé, ora noutro
e cantando como se não pudesse parar nunca mais. O homem então enfiava a ponta do dedo
entre as grades, era despedida e o passarinho, emudecido, vinha meio encolhido
oferecer-lhe a cabeça para carícia. Enquanto o homem se afastava,
o passarinho se atirava meio às cegas contra as grades, fugir, fugir!
Algumas vezes, o homem assistiu a essas tentativas que deixavam o passarinho tão cansado,
o peito palpitante, o bico ferido. Eu sei, você quer ir embora, você quer ir embora,
mas não pode ir, lá fora é diferente e agora é tarde demais.
A mulher punha-se então a falar e falava uns cinqüenta minutos sobre as coisas todas que quisera ter
e que o homem ruivo não lhe dera, não esquecer aquela viagem para
Pocinhos do Rio Verde e o Trem Prateado descendo pela noite até o mar.
Esse mar que se não fosse o Pai (que Deus o tenha!) ela jamais teria conhecido
porque em negra hora casara com um homem que não prestava para nada,
Não sei mesmo onde estava com a cabeça quando me casei com você, Velho.
Ele continuava com o livro aberto no peito, gostava muito de ler.
Quando a mulher baixava o tom de voz, ainda furiosa (mas sem saber mais a razão de tanta fúria),
o homem ruivo fechava o livro e ia conversar com o passarinho
que se punha tão manso que se abrisse a portinhola poderia colhê-lo na palma da mão.
Decorridos os cinqüenta minutos das queixas, e como ele não respondia mesmo,
ela se calava exausta. Puxava-o pela manga, afetuosa: Vai, Velho,o café está esfriando,
nunca pensei que nesta idade eu fosse trabalhar tanto assim. O homem ia tomar o café.
Numa dessas vezes, esqueceu de fechar a portinhola e quando voltou com o pano preto
para cobrir a gaiola (era noite) a gaiola estava vazia. Ele então sentou-se no degrau de pedra da escada
e ali ficou pela madrugada, fixo na escuridão. Quando amanheceu, o gato da vizinha desceu o muro,
aproximou-se da escada onde estava o homem ruivo e ficou ali estirado,
a se espreguiçar sonolento de tão feliz. Por entre o pêlo negro do gato desprendeu-se
uma pequenina pena amarelo-acinzentada que o vento delicadamente fez voar.
O homem inclinou-se para colher a pena entre o polegar e o indicador.
Mas não disse nada, nem mesmo quando o menino que presenciara a cena desatou a rir,
Passarinho mais besta! Fugiu e acabou aí, na boca do gato.
Calmamente, sem a menor pressa o homem ruivo guardou a pena no bolso do casaco e
levantou-se com uma expressão tão estranha que o menino parou de rir para ficar olhando.
Repetiria depois à Mãe, Mas ele até que parecia contente,
Mãe, juro que o Pai parecia contente, juro! A mulher então interrompeu o filho num sussurro,
Ele ficou louco.
Quando formou-se a roda de vizinhos, o menino voltou a contar isso tudo
mas não achou importante contar aquela coisa que descobriu de repente:
o Pai era um homem alto, nunca tinha reparado antes como ele era alto.
Não contou também que estranhou o andar do Pai, firme e reto,
mas por que ele andava agora desse jeito? E repetiu o que todos já sabiam,
que quando o Pai saiu, deixou o portão aberto e não olhou para trás.

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