16.4.12

Meras Coincidências

Alguém me dá notícia de um livro sobre coincidências, cuja tese é a de que elas não existem.
Realmente, o número de incidências que não coincidem é infinitamente maior - mas, ainda assim, como não se surpreender com as que acontecem? O tal livro não deve ser o de Koestler, que já andei lendo: se não me engano, ele admite e justifica as coincidências.
O caso do carro de Pedro Gomes, por exemplo. Ainda me lembro a expressão descrente de seu rosto, perguntando se eu sabia onde ele poderia encontrar uma calota para o carro já antigo que possuía então:
- No último domingo eu ia passando pela Avenida Atlântica, e uma calota caiu. Só fui perceber muito adiante, quando alguém na rua me avisou. Voltei para apanhar, não achei. E igual não existe mais para vender.
- Talvez na Mil - sugeri: - Aquela casa de acessórios para automóveis na Rua México.
- Acho que lá só vendem peças novas.
- Não custa tentar - insisti.
Dias depois ele me procurava para contar o que lhe havia acontecido. Seguira a sugestão, e verificou que sua dúvida procedia: lá só vendiam peças de carros novos. Mas o homem que o atendeu lhe disse:
- O senhor é de sorte: por acaso tenho uma. Domingo passado eu estava na Avenida Atlântica, quando um carro igual ao seu deixou cair uma calota. Apanhei e levei comigo, mesmo sem saber o que fazer com ela...
Numa cidade com alguns milhões de habitantes, ele fora atendido, na loja que sugeri por mero acaso, justamente pelo homem que havia recolhido na rua a calota de seu carro.
Para não sair das coincidências e dos carros, vejo-me rodando pelo aterro do Flamengo em sombria noite de chuva. Súbito, o limpador do pára-brisa se desprende, executa uma parábola no ar e vai desaparecer lá adiante, à direita da pista, em meio ao lamaçal. Impossível continuar dirigindo sem enxergar um palmo adiante do nariz.
Detenho o carro e dou uma longa marcha à ré, pretendendo o impossível: recuperar o diabo da peça, sem a qual eu não chegaria a lugar algum.
Ali vou eu a pé, debaixo de chuva, a chafurdar os sapatos na lama e afastando-me cada vez mais da pista. Quando penso em desistir, diviso logo adiante alguma coisa brilhando no chão: a haste de metal do limpador, guarnecida de borracha, meio afundada no barro.
Já de volta, procurei recolocá-lo no pára-brisa, para só então descobrir ser impossível: o limpador que encontrei não era o meu! De modelo diferente, pertencia a um carro de outra marca.
E eu estaria ali até hoje, diga-se de passagem, se não me houvesse ocorrido, debaixo de chuva, sem mais coincidências, com o auxilio de uma chave de fenda, passar para a esquerda do pára-brisa o limpador da direita.
Meras coincidências como esta podem não ter maior importância, senão a de confirmar para mim que elas existem. Já dizia Cervantes (ou alguém por ele, não estou bem certo): “yo no creo en brujerías ni en tropelias de Satanás, pero que las hay, las hay"...
Devo reconhecer modestamente que as coincidências não se dão apenas comigo. Ainda hoje, por exemplo, me lembrei do que me contou meu saudoso amigo Reynaldo Dias Leme, locutor de rádio, que morava em Nova York.
Um dia, ao passar pela Broadway, ele foi abordado por um desconhecido. Era um brasileiro de voz matuta perguntando em português onde ficava a Rua 46. Reynaldo quis saber como é que ele descobrira tratar-se de outro brasileiro.
- Não descobri não - respondeu candidamente o homem: - É que eu não sei falar inglês...
Disse que era de Campinas, no interior de São Paulo, havia acabado de chegar do Brasil. Hospedara-se num hotel da Rua 46, mas ao sair pela primeira vez, aturdido com o movimento, acabou se perdendo.
- Também sou de Campinas - informou Reynaldo, espantado com a coincidência.
Mas ele é que não perdia por esperar:
- Ah, é? - e o outro tirou do bolso um envelope: - Estou trazendo uma carta de recomendação para um conterrâneo nosso, talvez você saiba me dizer onde posso encontrá-lo. O nome dele... deixa ver aqui: é Reynaldo Dias Leme.
Quando eu próprio vivia em Nova York, todas as manhãs tomava o subway bem cedo, no subúrbio em Long Island onde morava, a caminho do trabalho em Manhattan.
No trem superlotado, aturdia-me a quantidade de passageiros em pé ao meu redor, numa promiscuidade que se renovava a cada estação do trajeto, quando uns saíam, outros entravam. E na minha imaginação de jovem, a própria vida era uma espécie de viagem, em que o convívio com os outros se fazia variado e efêmero, como o dos passageiros de um trem.
“Aquele ali, por exemplo”, - pensei numa daquelas manhãs, olhando alguém no banco em frente a mim, e que como eu tivera a rara sorte de conseguir sentar-se.
Era um cidadão com cara de índio em trajes civis - parecia um descendente direto de Winnetou, o cacique pele-vermelha. Durante a viagem podíamos nos observar com indiferença, como numa relação ocasional ao longo de nossa vida, para nunca mais nos vermos, quando cedêssemos lugar a outros. Como no poema de Vinicius,

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na trena
Um caminho entre dois túmulos

Ou pelo menos entre duas estações... Nunca mais verei esse índio - concluí, ao deixar o trem.
Naquele mesmo dia, ao anoitecer, voltei para casa, como sempre, de pé entre centenas, milhares de passageiros, num trem ainda mais abarrotado. Quando mal consigo me ajeitar em meio aos que se comprimem de pé, vislumbro entre eles, bem à minha frente - e sentado, como na vinda! - o índio que eu nunca mais veria.
Afirma Paulo Mendes Campos, numa crônica sobre o assunto (repetindo uma expressão, creio que de Rimbaud):
"Quando topamos uma boa coincidência, por um momento o vento da asa da imbecilidade roça por nossas orelhas em pé. Mudam-se os planos habituais do conhecimento como numa acrobacia aérea; contemplamos o mundo de cabeça para baixo".
Por coincidência, este vem a ser, mesmo, o título de um de meus livros: "De Cabeça para Baixo". É o que costuma acontecer comigo.
Como outro dia, durante uma visita da escritora Luciana Savaget.
Conversando sobre problemas de concepção literária que nos são comuns, a certa altura invoquei o exemplo de Dostoievski. Conta ele, numa de suas notas biográficas, que durante longo tempo tentou escrever um romance, do qual só lhe ocorria a primeira frase:
- "O ano passado, no dia tal do mês tal, à noite, aconteceu-me uma coisa extraordinária".
Que coisa era essa, ele não conseguia imaginar. Então resolveu deixá-la para diante, ir narrando a partir daí o que lhe viesse à cabeça. E acabou escrevendo "Humilhados e Ofendidos", um de seus maiores romances, em tamanho e em qualidade.
Minha amiga, curiosamente, se interessou em saber a data da noite em que a tal coisa extraordinária havia acontecido. Eu não me lembrava - para atendê-la teria de consultar o livro, o que não seria fácil: como de hábito, não saberia onde estivesse. Pois bastou esticar o braço até a estante mais próxima e encontrá-lo (o que em si já era uma coincidência). Li a primeira frase em voz alta:
- "O ano passado, em 22 de março à noite, aconteceu-me uma coisa extraordinária".
Alegremente surpreendida, ela me informou então que 22 de março era a data de seu aniversário.
Poucos minutos eram passados, e Edwaldo Pacote me telefonava. Antes de iniciar uma de nossas agradáveis conversas habituais, narrei-lhe o ocorrido:
- Já que você gosta destas coincidências...
- Tanto gosto, que aqui vai mais uma - replicou ele: - O dia 22 de março é também o do meu aniversário.
Naquela mesma noite, Eduardo Vaz, outro amigo meu e das coincidências, não se surpreendeu quando lhe contei o ocorrido, pois com ele não houve nenhuma: não nasceu no dia 22 e sim no dia 23 de março.

Fernando Sabino

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