Rosas num Pote Verde
Lygia Fagundes Telles
Lá estão elas, lá estão elas. No alto da rampa, à esquerda de quem entra, na sala mais visitada desta 5ª Bienal, está o quadro. E no quadro, o pote. E no pote, as rosas: Rosas num pote verde.
Chegam as moças de calças compridas e olhos bistrados, acompanhadas de rapazes de cabelos em desalinho e suéter displicentemente atirado ao ombro.
Olham, olham tudo com uma expressão vagamente irônica, fazem observações divertidas e assim como vieram, no mesmo andar de eterna disponibilidade, passam. Chegam os intelectuais, silenciosos e compenetrados, levam a mão ao queixo, aproximam-se, afastam-se, apertam os lábios afeitos ao rito entre complacente e desdenhoso ante a ignorância dos visitantes em redor, "ali o que mais me exaspera é a burrice!..." Passam. Chegam os colegiais de meias grossas e uniforme azul e branco. Chegam irrequietos, falantes; depois, aos poucos, vão perdendo a alegria e é já em meio de uma total perplexidade que ouvem - a boca ligeiramente aberta, o olhar vazio - as explicações da monitora, moça tão esclarecida quanto modesta, tentando - e inutilmente - disfarçar a erudição com aquele jeito assim de quem pede desculpas, "mas é que eu sou mesmo tão culta!..." Também passam. Chegam os pais de família com a mulher de ar enfastiado e filhos de ar mais enfastiado ainda, as mãos enfurnadas nos blue jeans, o olhar infeliz, "estou com sede, mãe..." O pai promete-lhe uma coca-cola, "mas depois, ouviu bem? Agora vamos ver os quadros, vocês precisam desde cedo se ilustrar um pouco, também a vida não é só futebol..." E procura despertar o interesse da mulher: "Este, meu bem, é Van Gogh, considerado um dos melhores pintores do mundo. Foi um homem esquisitíssimo, chegou um dia - baixa o tom de voz - a cortar uma orelha para dar de presente à amante...". O primogênito aproxima-se: "Cortou o quê?"
A mulher afasta-o, impaciente. Imagine se isso é conversa para criança! Suspira, cansada, e se apóia ao braço do marido, "andar nesta bienal com estes saltos; eu devia ter vindo com os sapatos de feira". O homem insiste em exibir os fragmentos que lhe ficaram na memória de um artigo que leu sobre o pintor:
"Era meio louco; vivia solto pelos campos, pintando sem parar, até que um dia, num acesso mais forte, deu um tiro no peito..." Atalha-o a mulher, subitamente animada, ah! sim, lembrava-se agora, tinha visto o filme, "quem fez o papel foi aquele Kirk Douglas, não foi? Ele trabalhou com uma barba ruiva e um chapéu de palha desabado, estava feio demais, gostei mais dele quando trabalhou com a Silvaria Mangano naquela outra fita em que ele é um guerreiro..." O homem responde que não se lembra de nada. Está agora de mau humor, a mania que ela tem de não prestar a mínima atenção ao que ele diz. E o menino a se queixar de sede, "será que você não pode esperar um pouco, não pode?" Passam. Como os outros, como todos os outros, também eles passam.
Ficam as rosas. Ficam as tristes, as desesperadas rosas dentro de um pote verde. De que cor são elas? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Não poderei vos dizer. Ninguém, ninguém no mundo poderá vos dizer de que cor exatamente são essas rosas. Porque, se vistas de uma certa distância nelas prevalece o tom rosado, ao nos aproximarmos, veremos que há também muito vermelho coagulado nas corolas. E será preciso chegar um pouco mais perto para descobrirmos então o amarelo rompendo por entre o vermelho, e de mistura com o amarelo, laivos arroxeados e por entre os laivos, como num milagre, o branco que de tão branco tem reflexos azulados. Há todas as cores empastadas nas corolas atrozes e que saltam da tela num intumescimento de carne.
Rosas num pote verde. Tão simples, não? Tão inocente. Contudo, há mais dor nessas rosas do que no retrato do velho sentado numa cadeira, chorando. O velho tem o rosto tapado com as mãos e está chorando aquele choro silencioso que ninguém pode ouvir.
E, se esconde a face, não consegue esconder os pobres sapatos frouxamente desamarrados e que têm a mesma expressão da face descoberta. Pois nas corolas também expostas, no labirinto sem saída das corolas há mais tristeza ainda do que a tristeza mansa daqueles sapatos. É que no labirinto das rosas há uma procura feroz, desesperada. É que nas feridas das pétalas, nesse empastado rastro de tinta, de mistura com a fuga há uma busca. E os sapatos do velho chorando na cadeira já não buscam mais nada.
Rosas num pote verde. Aproximai-vos delas, aproximai-vos e vereis que as bordas das pétalas estouram como lábios gretados na mais cruciante das sedes: a sede do amor.
Ele era feio, pobre e só. Quis tanto amar, amou, mas justamente as criaturas amadas, se não o repeliram, fizeram-lhe mais mal ainda demonstrando compaixão. Buscou Deus, Ele devia estar na natureza, quis mesmo vê-Lo quando a cara vermelha, os olhos queimados - subia no topo das árvores e lá ficava como um girassol louco voltado para a luz.
Rosas num pote verde. Aproximai-vos delas e tereis o retrato do desespero do homem na solidão.
Aproximai-vos que essas não são rosas comuns. Atentai para suas pétalas, atentai, e vereis então que elas vertem sangue.
Chegam as moças de calças compridas e olhos bistrados, acompanhadas de rapazes de cabelos em desalinho e suéter displicentemente atirado ao ombro.
Olham, olham tudo com uma expressão vagamente irônica, fazem observações divertidas e assim como vieram, no mesmo andar de eterna disponibilidade, passam. Chegam os intelectuais, silenciosos e compenetrados, levam a mão ao queixo, aproximam-se, afastam-se, apertam os lábios afeitos ao rito entre complacente e desdenhoso ante a ignorância dos visitantes em redor, "ali o que mais me exaspera é a burrice!..." Passam. Chegam os colegiais de meias grossas e uniforme azul e branco. Chegam irrequietos, falantes; depois, aos poucos, vão perdendo a alegria e é já em meio de uma total perplexidade que ouvem - a boca ligeiramente aberta, o olhar vazio - as explicações da monitora, moça tão esclarecida quanto modesta, tentando - e inutilmente - disfarçar a erudição com aquele jeito assim de quem pede desculpas, "mas é que eu sou mesmo tão culta!..." Também passam. Chegam os pais de família com a mulher de ar enfastiado e filhos de ar mais enfastiado ainda, as mãos enfurnadas nos blue jeans, o olhar infeliz, "estou com sede, mãe..." O pai promete-lhe uma coca-cola, "mas depois, ouviu bem? Agora vamos ver os quadros, vocês precisam desde cedo se ilustrar um pouco, também a vida não é só futebol..." E procura despertar o interesse da mulher: "Este, meu bem, é Van Gogh, considerado um dos melhores pintores do mundo. Foi um homem esquisitíssimo, chegou um dia - baixa o tom de voz - a cortar uma orelha para dar de presente à amante...". O primogênito aproxima-se: "Cortou o quê?"
A mulher afasta-o, impaciente. Imagine se isso é conversa para criança! Suspira, cansada, e se apóia ao braço do marido, "andar nesta bienal com estes saltos; eu devia ter vindo com os sapatos de feira". O homem insiste em exibir os fragmentos que lhe ficaram na memória de um artigo que leu sobre o pintor:
"Era meio louco; vivia solto pelos campos, pintando sem parar, até que um dia, num acesso mais forte, deu um tiro no peito..." Atalha-o a mulher, subitamente animada, ah! sim, lembrava-se agora, tinha visto o filme, "quem fez o papel foi aquele Kirk Douglas, não foi? Ele trabalhou com uma barba ruiva e um chapéu de palha desabado, estava feio demais, gostei mais dele quando trabalhou com a Silvaria Mangano naquela outra fita em que ele é um guerreiro..." O homem responde que não se lembra de nada. Está agora de mau humor, a mania que ela tem de não prestar a mínima atenção ao que ele diz. E o menino a se queixar de sede, "será que você não pode esperar um pouco, não pode?" Passam. Como os outros, como todos os outros, também eles passam.
Ficam as rosas. Ficam as tristes, as desesperadas rosas dentro de um pote verde. De que cor são elas? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Não poderei vos dizer. Ninguém, ninguém no mundo poderá vos dizer de que cor exatamente são essas rosas. Porque, se vistas de uma certa distância nelas prevalece o tom rosado, ao nos aproximarmos, veremos que há também muito vermelho coagulado nas corolas. E será preciso chegar um pouco mais perto para descobrirmos então o amarelo rompendo por entre o vermelho, e de mistura com o amarelo, laivos arroxeados e por entre os laivos, como num milagre, o branco que de tão branco tem reflexos azulados. Há todas as cores empastadas nas corolas atrozes e que saltam da tela num intumescimento de carne.
Rosas num pote verde. Tão simples, não? Tão inocente. Contudo, há mais dor nessas rosas do que no retrato do velho sentado numa cadeira, chorando. O velho tem o rosto tapado com as mãos e está chorando aquele choro silencioso que ninguém pode ouvir.
E, se esconde a face, não consegue esconder os pobres sapatos frouxamente desamarrados e que têm a mesma expressão da face descoberta. Pois nas corolas também expostas, no labirinto sem saída das corolas há mais tristeza ainda do que a tristeza mansa daqueles sapatos. É que no labirinto das rosas há uma procura feroz, desesperada. É que nas feridas das pétalas, nesse empastado rastro de tinta, de mistura com a fuga há uma busca. E os sapatos do velho chorando na cadeira já não buscam mais nada.
Rosas num pote verde. Aproximai-vos delas, aproximai-vos e vereis que as bordas das pétalas estouram como lábios gretados na mais cruciante das sedes: a sede do amor.
Ele era feio, pobre e só. Quis tanto amar, amou, mas justamente as criaturas amadas, se não o repeliram, fizeram-lhe mais mal ainda demonstrando compaixão. Buscou Deus, Ele devia estar na natureza, quis mesmo vê-Lo quando a cara vermelha, os olhos queimados - subia no topo das árvores e lá ficava como um girassol louco voltado para a luz.
Rosas num pote verde. Aproximai-vos delas e tereis o retrato do desespero do homem na solidão.
Aproximai-vos que essas não são rosas comuns. Atentai para suas pétalas, atentai, e vereis então que elas vertem sangue.
Brilhante texto. Ao lê-lo, percebi que algo em mim se tornou DIVINO!!!
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