É curioso, mas até esse momento nunca me apercebera realmente do que significa destruir um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro afastar-se para evitar a poça de água, vi o mistério, o mal indizível de cortar a vida de um homem quando está em pleno florescimento. Este homem não estava a morrer, estava vivo tal e qual como nós estávamos vivos. Todos os órgãos do seu corpo estavam a funcionar - as entranhas a digerir a comida. a pele a renovar-se, as unhas a crescer, os tecidos a formar-se - labutando todos em solene inconsequência. As suas unhas continuariam a crescer quando começasse a cair, quando estivesse a cair, com um décimo de segundo de vida. Os seus olhos viram o saibro amarelo e as paredes cinzentas, e o seu cérebro ainda recordava, previa, raciocinava - raciocinava até acerca de poças de água. Ele e nós éramos um grupo de homens caminhando juntos, vendo, ouvindo, sentindo, compreendendo o mesmo mundo; e em dois minutos, com um esticão súbito, um de nós teria partido - um espírito a menos, um mundo a menos."
[...]
"Um alívio imenso apoderara-se de nós, agora que a tarefa terminara. Sentia-se um impulso para cantar, para desatar a correr, para rir à socapa. Subitamente, toda a gente começou a tagarelar jovialmente". [...]
"- Bem, senhor, tudo correu da maneira mais satisfatória. Tudo acabou... clique! Assim. Nem sempre corre bem ... oh, não! Soube de casos em que o médico foi obrigado a ir à parte de baixo do patíbulo puxar as pernas de prisioneiro para se assegurar da morte. Muito desagradável!
- Retorcendo-se, hã? Isso é mau! - disse o superintendente.
- Ah, senhor, é pior quando ficam obstinados! Lembro-me de um homem que se agarrou às grades da cela quando fomos buscá-lo. Dificilmente acreditará, senhor, que foram precisos seis carcereiros para o levar, três puxando em cada perna. Tentamos convencê-lo. "Meu caro amigo", dissemos, "pense em toda a mágoa e chatice que nos está a causar!" - Mas não, ele não queria ouvir! Ah, foi um grande problema!
Dei comigo a rir muito alto. Toda a gente estava a rir. Mesmo o superintendente sorriu, condescendente.
- O melhor é virem todos beber qualquer coisa, disse muito jovialmente. - Tenho uma garrafa de uísque no carro. Bem precisamos.
Atravessamos os grandes portões duplos da prisão, em direcção à estrada.
- Puxar-lhe as pernas! - exclamou um magistrado bírmanês subitamente, e desatou a rir alto.
Recomeçamos todos a rir. Nesse momento, a historieta de Francis parecia extraordinariamente engraçada. Todos juntos, nativos e europeus, bebemos muito amigavelmente. O morto estava a trinta metros de distância.".
Um Enforcamento,
George Orwell
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