Insônias
Um dos argumentos usados para promover a venda de canais a cabo foi o da insônia.
A TV dita aberta tinha o hábito de sair do ar por volta das duas da manhã - alguns canais
saíam antes, outros depois.
Aqueles que, por um motivo ou por outro, não estavam dormindo nem fazendo
coisa melhor e ligavam o aparelho em busca de alguma coisa para ver ficavam
condenados aos chuviscos; um ou outro canal mais afoito colocava o "colorbar",
e tudo ficava por isso mesmo. Com o advento da TV por assinatura, os insones poderiam
dispor de entretenimento, cultura, lazer, o diabo.
Pois sim. Outro dia - aliás, outra noite dessas -, dormi a tarde inteira e, à noite, fiquei
sem sono. Fui testar as maravilhas prometidas pelas duas TVs a cabo que aluguei.
Por Júpiter! Nada daquilo me interessava. Não pretendo comprar tapetes, não vou
adquirir complicadíssimos aparelhos de malhação, não rezo o terço bizantino, não posso
nem quero testar as receitas culinárias oferecidas e demonstradas.
A vida sexual dos golfinhos nunca me interessou e minhas preocupações presentes,
passadas e futuras não estão nas grutas pré-históricas do Tibete. Tampouco preciso
exorcizar os demônios que me frequentam, convivo bem com todos eles.
Mudei o canal para uma cena incompreensível. Dois javalis ou coisas equivalentes
disputavam uma fêmea, acho que da mesma espécie. Era um pornô animal narrado
cientificamente por um especialista de um instituto canadense.
Apertei mais uma vez o controle remoto e vi um sujeito barbado lendo um texto
apocalíptico e anunciando o fim do mundo. Ao contrário de me despertar, deu-me um
sono letal. E voltei para a cama, donde não deveria ter saído.
(CONY, Carlos Heitor. Folha de S. Paulo, 13 abr. 2002. Opinião. Texto adaptado.)
TEXTO GENIAL! 'risos'
ResponderExcluir" Era um pornô animal narrado cientificamente por um especialista de um instituto canadense."
Épico.